quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A geração que não vinha...

Trabalho de novos coreógrafos começa a ganhar espaço
Por Airton Tomazzoni

Acompanho a produção de dança contemporânea do Rio Grande do Sul de maneira mais efetiva desde final dos anos 80, quando comecei a estudar teatro. Naquela época, comecei a me fascinar por criadores como Carlota Albuquerque (Terpsí), Guelho Menezes (Balleto), Dagmar Dornelles, e logo mais por Andréa Druck, Ivan Motta, Eva Schul, Jussara Miranda. Passados quase 20 anos dessa história, alguns não mais atuam no cenário da dança e, que bom, outros prosseguiram ativos. Acredito num contexto cultural nutrido pelo fluxo artístico que se dá entre tradições e rupturas, e, por isso, ao reconhecer que uma certa tradição em dança sedimentada, eu vinha tendo dificuldade de ver uma nova geração mostrar a sua cara, em pleno século XXI.

Sim, na década de 90 apareceram, assim como eu, outros coreógrafos e coreógrafas se aventurando neste cenário. Eduardo Severino, Tatiana da Rosa, Cibele Sastre, Luciana Paludo, Heloísa Bertolli, Luciane Coccaro, todos que transitaram como bailarinos e alunos naquela época da qual comecei falando. Uma espécie de geração de transição que, nutrida em escolas, grupos e companhias tradicionais do Estado, procurava (errando ou acertando), novas linguagens, novos modos de operar, enfim, artistas que se permitiram arriscar - tarefa difícil para o que já se estabeleceu e indispensável para que a arte possa desfrutar de outras condições de possibilidade. Mas essa “transição”, no meu ponto de vista, já estava ficando um pouco prolongada demais e eu sentia necessidade de algo que pudesse mostrar a reverberação de todo esse contexto, seja no seu prolongamento, no seu desdobramento, na sua negação, na sua re-elaboração.

Então, é com muita satisfação que de 2007 pra cá começo a perceber a movimentação de jovens criadores que começam a mostrar a sua casa. Em comum talvez só tenham o fato de terem vinte e pouco anos e se autorizarem a investir na criação em dança aqui por estes pagos. Nos seus trabalhos eles e elas trazem propostas estéticas diferenciadas, perspectivas muito particulares e conexões singulares.

Inicio de largada falando de três criadoras, o que já é um diferencial do trabalho A3 (foto1). Uma produção colaborativa de Juliana Vicari, Thaís Alves e Carol Laner, intérpretes e coreógrafas. As três são graduadas no curso de Graduação em Dança da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Fundarte/UERGS), com consistentes, criativas e sensíveis pesquisas na área de criação. A montagem foi apresentada na Sala Álvaro Moreyra, em apenas três noites de junho, e conseguiu um resultado muito além da justaposição dos trabalhos acadêmicos de cada uma, em cena. O trio potencializou as questões presentes no trabalho de cada uma: a improvisação, as propostas de tarefas, o estado de presença cênica, o jogo, as muitas percepções destes corpos. O resultado é inteligente, cheio de uma dignidade (e sei que esta palavra pode estar meio esquecida, mas faz toda diferença no nosso mundo de hoje), traduzindo intérpretes que, na sua jovialidade, revelam-se maduras, honestas e totalmente “donas” da proposta. Tão “donas” que as explícitas referências à estética (e ética) do pessoal da Judson Church, encontram uma expressão muito pessoal, com uma assinatura muito delas. São corpos dispostos a arriscar, mas com a segurança e domínio para isto, como traduz a deliciosa cena em que com um colchão no meio do palco elas literalmente deitam e rolam.

Vindo de uma investida universitária em dança interrompida precocemente no curso de Graduação de Dança da ULBRA, Gustavo Silva, da New School Dreams, tem sua formação e produção constituída no universo da dança de rua. Contudo, La chronic, sua obra, apresentada no Dança de Domingo, no Teatro de Câmara, em maio, mostrou um criador disposto a atravessar e borrar fronteiras, ainda que este não tenha sido o seu objetivo. Com coreografias que fazem do vocabulário da dança de rua um trampolim para explorar as possibilidades dos corpos se moverem no espaço, ele constrói uma densa e ao mesmo tempo bem-humorada obra. La chronic investiga o cotidiano traduzido na dança do universo das crônicas. O espetáculo coloca em cena o dia-a-dia e suas reviravoltas em vibrantes coreografias com grande apuro técnico, pontuadas com poéticos fragmentos. De lambuja, a obra ainda revela talentos precoces, como o dos bailarinos Cauan Rossoni e Josyane Ramos, entre outros.


Em Bondage (foto2), as imagens são inquietantes. Mulheres seminuas, amarradas, amordaçadas em um território de sensualidade e opressão. É neste universo que mergulha o coreógrafo Douglas Jung, no trabalho que integrou o projeto Incubadora de novos coreógrafos, do Grupo Gaia, apresentado em julho, na Sala Álvaro Moreyra. Douglas já havia acenado com um trabalho irreverente na Mostra de Dança Verão, onde, ao som de Diariamente, na voz de Marisa Monte, despencavam em cena de tudo um pouco, de botinas de borracha até uma melancia que se espatifava no palco. Em Bondage, o jovem coreógrafo faz um exercício mais apurado visualmente e mostra-se hábil em conduzir as intérpretes por caminhos tortuosos no limite da dor e do prazer. Além de Douglas, a Incubadora apresentou ainda os trabalhos Sobre vomitar coelhinhos, de Maria Albers e Luiza Moares - dispostas a arriscar - e Não se Pode Amar, Gozar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo, de Fabiane Vanoni.

Mas não só na capital esta nova geração vem se revelando. Em Montenegro, a Troupe Xipô colocou em cena o espetáculo Por Você, com pesquisa e criação de Suzana Schoellkopf (atriz e bailarina atuante que finalmente se arrisca como criadora) e Márcio Barreto. Os dois levam para os palcos o resultado dos seus trabalhos de conclusão do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Por Você faz a opção por trabalhar com a mistura de linguagens: dança, teatro, circo e música ao vivo. O humor e o lirismo marcam a montagem e resulta num espetáculo vibrante e envolvente.


Em Canoas, Eduardo Menezes firmou um trabalho coreográfico original e potente com o grupo Art&Dança. Suas inúmeras e bem acabadas coreografias o fizeram conquistar o prêmio de melhor coreógrafo no Festival de Joinville em 2007, levando-o a Lyon e também a atuar em São Paulo. No mesmo circuito, Matheus Brusa, de Caxias do Sul, revelou uma pequena obra-prima, Electões, também destacada do Festival de Joinville, e, neste ano, estreou Bipolar, vencedor do prêmio Klaus Vianna, da Funarte.

Estes jovens criadores esboçam um novo panorama, com propostas singulares, revelando a capacidade de processar, reelaborar, desafiar e desdobrar as informações e provocações que foram sendo alimentadas nos últimos anos. Comemora-se por um lado, lastima-se por outro. Por um lado tem-se um contexto para a dança que começa a se ampliar, com os cursos de graduação, os concursos para a rede pública de ensino, com projetos como do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre, com o Centro Coreográfico do Terpsí, com os Desdobramentos do ProjetoMax, com o pessoal da sala 209 da Usina do Gasômetro. Contudo, por outro lado, ainda não se tem nenhuma companhia mantida por patrocínio privado, o Prêmio de Incentivo às Artes Cênicas do Estado não é entregue há mais de 6 anos, e se conta com uma equivocada Lei de Incentivo Estadual, que, para completar, produtores fraudulentos deixaram possíveis patrocinadores com um pé atrás.

A geração que não vinha está chegando e talvez logo já vá (Eduardo Menezes está em São Paulo, Carol Laner, no Rio, e Douglas Jung, na Alemanha, mas ainda com fortes conexões de seus trabalhos por aqui), caso as perspectivas para a dança no Estado não se sedimentem, ampliem e possam apontar para um horizonte profissional possível e estável. Sejam bem-vindos e vida longa a esta corajosa, destemida e talentosa moçada!



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